2017/06/06

Onze e quarenta

Às onze e quarenta, depois de os miúdos mais novos estarem deitados, não sei onde anda o mais velho, gritei:
- Vou sair para comprar cigarros!
- Está bem!- Gritou a Madalena, mas qualquer coisa na sua voz, um tom tão tristemente indisfarçável, me fez fechar os olhos longamente. 
Bati a porta. A minha filha, como eu, sabe que não saio às onze e quarenta para comprar cigarros. Saio para comprar, depois da primeira, bebida enquanto, mãe dedicada, preparo o jantar, a segunda garrafa de vinho. Senti-me a mulher mais miserável do mundo, indigna dos filhos que tenho, indigna do amor e da admiração que essas estúpidas crianças têm por mim, mas, ainda assim, saí. São quinhentos metros até  à próxima bomba de gasolina. Gloriosos quinhentos metros: acelero nas rectas, travo abruptamente nos semáforos, escuto o Michael Jackson. The lady is mine ou lá o que é. Na bomba, passos trôpegos, para disfarçar, enchi o depósito, pedi duas garrafas de vinho branco, um maço de cigarros, duas embalagens de pensos e três pães com chouriço para o pequeno almoço dos meus meninos. 
Quando cheguei a casa, ainda a minha filha estava acordada. Tentei falar o menos possível para que não se apercebesse da minha voz. Escondi as garrafas de vinho e fingi-me sóbria. Fui para o quarto. Massajei os pés com creme, longamente, para ocupar o tempo. Lavei os dentes. Quando finalmente senti a minha filha adormecida, saí do quarto, percorri o corredor e entrei na cozinha. Acendi um cigarro, enchi um copo de vinho e pus a tocar o quarto concerto para piano de Bach. O segundo andamento, ah, beleza tão estupidamente bela, é o que me convém, é o que a noite me traz! Noite tão puta. Larghetto.